Sunday, July 08, 2007

Arcanja, assim se chamava.

I


Tenho pensado em ti. Lembro-me imensas vezes dos meus caracóis e os olhos verdes a passearam-se no teu quintal. Tinhas uma cozinha meio improvisada lá ao fundo, onde guardavas os teus alguidares cor-de-laranja, onde tinhas uma embalagem da manteiga planta a fazer de escorredor de talheres, as panelas todas arrumadas sempre com um pano por cima por causa das moscas. Cozinhavas sempre com a mesma panela, mas tinhas umas 30. Canja. Fazias-me sempre canja. A tua canja era a melhor de todas. 1/2 kg de arroz e uma perna de frango, o limão o caldo knorr e a hortelã. Bastava. Demorava alguns 50 min a ficar pronto. Ficava sempre com um creme que eu apreciava. Tu sorrias ao ver-me devorar pratos e pratos de canja. Ficavas orgulhosa. Dizias que a tua canja não era nada de especial mas sabias que eu a devorava com aquele pão (torninhos, não era o que lhe chamavas?) que compravas à dos mau-mau (aquela padaria ao fim da rua Sacadura Cabral, onde trabalhavam aqueles homens de Olhão que tinham sido presos). A cozinha tinha um chão de tijoleira, mal acabado. Chovia no Inverno lá dentro, às vezes. Nesses dias tu arranjavas daqueles plásticos para tapar a tralha toda. Mesmo ao lado da cozinha era a "oficina" do avô Carlos. Lembro-me de o ver a caminhar para lá, vir com uns rádios todos desmontados a dizer que não-sei-quem tinha pedido que os arranjasse mas aquilo não tinha arranjo. A falta de arranjo chamava-se velhice. Eram rádios, relógios, telefones, era tudo. Mais tarde lembro-me de lá voltar e de saber que ele não voltaria a estar ali. Uma vez ele ensinou-me a desenhar. Acho que foi ele quem me ensinou a fazê-lo. Era dia de Natal e estávamos todos lá em casa da minha mãe. Na sala-de-jantar. (Tu gostavas mesmo era de ficar na cozinha, sempre. Mas Natal é Natal e jantava-se na sala nesses dias.). Eu estava a fazer uns rabiscos, não sei ao certo que idade tinha. Lembro-me de lhe pedir para me ensinar a desenhar. E ele então desenhou um biberão. Eu passei por cima umas quantas vezes e nas semanas seguintes só desenhava biberãos. Na verdade eu tinha uma enorme paixão pelo meu biberão. Larguei-o aos dez. Enfim.
Nessa oficina do avô Carlos havia um objecto que nunca mais me vou esquecer. Vocês apostavam no totoloto todas as semanas. Era um hábito. Ele construiu uma rodinha daquelas que dão na televisão para vos sair a sorte grande. As bolinhas tinham os números todos escritos à mão por ele. Eu achava tanta piada a isso, jogava todos os dias. Ficou lá, em cima da prateleira do avô, que não sei o que lhe fizeram. Tinhas muitas plantas, avó. Tinhas umas muito bonitas assim baixinhas, não sei o nome. Depois tinhas o estendal preso nos troncos das plantas. Tinhas sempre os lençóis lá estendidos. A tua casa-de-banho era tão improvisada quanto a cozinha. Tinhas uns armários pequeninos e antigos, a sanita era um buraco com aquelas carpetes de borracha que se usava nas casas antigas. Lembro-me tão bem de me aqueceres a água para tomar banho. Tinhas aquele balde com um chuveiro. Não havia banho como aquele. Mais ao lado da casa de banho tinhas uma torneira no quintal, com um banco de madeira e um espelho por cima. Pedias sempre para passar os pratos e os copos pequeninos por água naquela torneira. E às vezes faziamos sardinhadas lá ao lado. Guardavas sempre o pão da tua sardinha para eu comer. Sabias que eu gostava. Uma porta mais ao lado tinhas aquelas fitinhas às cores com que eu brincava muito. Era a cozinha. Não passava lá muito tempo porque havia ratos dentro do armário. Uma vez fui lá buscar o frasco do açucar e deparei-me com um ratinho. Medo. Fui a correr chamar-te para ires ver e tu foste logo, socorrer-me. Tinhas uma mesa cor-de-laranja, e os talheres nas gavetas da mesa. Eu gostava era da tua sala. Sentava-me na mesa a brincar com aquelas coisas que tem uns pins com cores que são umas bolinhas, e tinha uma rede branca, também de plástico onde se fazia desenhos com aquilo. Claro está que um tempo mais tarde acabei por me fartar. Tinhas na sala um calendário que tinha umas coisas para nós mudarmos para o ano que quisessemos. Nunca cheguei a perceber bem, mas não foi por falta de explicação. Era na sala-se-jantar que me punhas a fazer desenhos, também. Quase adormecias em frente a mim. Mas rias-te. E o teu riso era bonito.
no teu corredor tinhas um móvel castanho. Tinhas dois pentes lá dentro e um baton para os lábios. Guardavas os sapatos numa mini prateleira que tinha em baixo.
Íamos comer uma torrada ao café na baixa e beber uma meia-de-leite. Íamos à missa.

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